quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Na Estrada: você está lendo isso errado

O livro Na Estrada, de Jack Kerouac, é um dos clássicos mais deslidos de todos os tempos. Você pensou que era uma celebração da estrada? Pense de novo [...]. Na Estrada é um clássico da literatura universal justo por não ser apenas isso. [...]
A intenção de Kerouac provavelmente era sim fazer uma celebração da estrada. Se tivesse sido bem-sucedido, provavelmente não estaríamos falando dele hoje.

Porque todo grande livro é mais inteligente que seu autor. Toda grande obra contém em si o seu próprio contradiscurso. Toda grande narrativa sempre se constrói em torno de uma fratura estrutural que ameaça lhe demolir.

É essa tensão que atrai os leitores, que nos faz voltar ao livro, sempre renovados [...]. Só os livros que causam esse tipo de engajamento conseguem sobreviver de uma geração para a outra, e se tornarem clássicos.
Então, por um lado, “Na Estrada” é a história de Sal Paradise, um escritor certinho de Nova Iorque, que encontra o malucão Dean Moriarty e sai loucamente com ele pelas estradas da América do Norte. É a celebração da estrada, um elogio à liberdade, um chamado para que todos saiam de suas casas e sumam por aí.
Mas, por outro lado, é exposição progressiva e sistemática desse exato contradiscurso.
Apesar de idolatrar Dean, até mesmo Sal vai percebendo que ele é um canalha, egocêntrico, narcisista que só se preocupa consigo mesmo; que usa as pessoas como se fossem objetos – carteiras, especialmente; que não tem pudor nenhum em descartá-las quando lhe dá na telha.
Ao longo do livro, várias pessoas, inclusive o narrador, são atraídas pela energia e força vital de Dean… até perceberem que essa energia e força vital estão sendo sugadas delas: como um vampiro, Dean se alimenta dos seus fãs. Suga até o caroço e depois cospe fora.
Por isso, Sal diversas vezes larga a estrada e volta para Nova York, para a saia da mãe, para o ambiente familiar e seguro onde pode viver e trabalhar. A estrada pode até ser boa, parece dizer o livro, mas não por muito tempo [...].
Até que, mais uma vez, Sal fraqueja, fica de pau duro por Dean, ambos pegam a estrada, Sal quebra a cara e volta pra Nova York.
[...] Mas o livro só termina mesmo quando Sal finalmente supera Dean.

É sempre interessante reparar onde as narrativas começam e terminam, pois essas balizas nos revelam qual é a história sendo contada – algo nem sempre óbvio. 
Na Estrada começa com Sal encontrando Dean e termina no momento em que ambos se esbarram na rua, em Nova York. Dean chama: “vem”, e Sal, escaldado, responde: “não, obrigado, estou com amigos, a gente se vê.”
Em literatura, tudo é contexto. Então, cabe ressaltar que essa cena não é mostrada como a derrota de Sal ou “vejam como Sal ficou careta, a vida o derrotou”, “o bobão do Sal ficou pra trás, enquanto Dean ganhou o mundo”, etc.
Pelo contrário, o que a cena mostra é: Dean está só, depois de passar a vida usando e abusando de todos; e Sal, nosso alter-ego, está sábio o suficiente para não mais se deixar vampirizar.
E, nesse momento, termina o livro.
Ou seja, Na Estrada não é só uma celebração da estrada [...], mas também a história do amadurecimento de Sal Paradise.
De como ele finalmente aprendeu a dizer não.


Por Alex Castro, em 19/08/2012 no site Papo de Homem.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

"- Eu me prometo para um dia este mesmo silêncio, eu nos prometo o que aprendi agora. Só que para nós terá que ser de noite, pois somos seres úmidos e salgados, somos seres de água do mar e de lágrimas.
[...]
Somos criaturas que precisam mergulhar na profundidade para lá respirar, como o peixe mergulha na água para respirar, só que minhas profundidades são no ar da noite. A noite é o nosso estado latente. [...] Na noite a ansiedade suave se transmite através do oco do ar, o vazio é um meio de transporte.
[...]
Não suportei mais e estou confessando que já sabia de uma verdade que nunca teve utilidade e aplicação, e que eu teria medo de aplicar, pois não sou adulta bastante para saber usar uma verdade sem me destruir.
[...]
Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.
[...]
O inferno é a boca que morde e come a carne viva que tem sangue [...], o inferno é a dor como gozo da matéria [...]. A aceitação cruel da dor, a solene falta de piedade pelo próprio destino, amar mais o ritual de vida que a si próprio - esse era o inferno, onde quem comia a cara viva do outro espojava-se na alegria da dor.
[...]
Onde, reduzidos a pequenos chacais, nós nos comemos em riso. Em riso de dor - e livres. O mistério do destino humano é que somos fatais, mas [...] de nós depende realizarmos o nosso destino. Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou.
[...]
Mas é que tornar-se humano pode se transformar em ideal, e sufocar-se de acréscimos... Ser humano não deveria ser um ideal para o homem que é fatalmente humano; ser humano tem que ser o modo como eu, coisa viva, obedecendo por liberdade ao caminho do que é vivo, sou humana. E não preciso cuidar sequer de minha alma [...]. 
Somos livres, e este é o inferno.
[...]
Eu conhecia a violência do escuro alegre - eu estava feliz como o demônio, o inferno é o meu máximo.
[...]
Só por uma anomalia da natureza é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo.
[...]
Eu caíra na tentação de ver, na tentação de saber e de sentir. Minha grandeza, à procura da grandeza do Deus, levara-me à grandeza do inferno. [...]
A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer. [...] Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma. Eu nunca mais repousaria: eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Se adormeço um instante, o eco de um relincho me desperta. E é inútil não ir. No escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo que durmo, mas no silêncio o ginete respira. [...] Todos os dias será a mesma coisa: já ao entardecer começo a ficar melancólica e pensativa. Sei que o primeiro tambor na montanha fará a noite, sei que o terceiro já me terá envolvido na sua trovoada.
[...]
Que fizemos nós, os que trotam no inferno da alegria? [...] Da última vez que desci da sela enfeitada, era tão grande a minha tristeza humana que jurei que nunca mais.
[...]
A noite é a minha vida, entardece, a noite feliz é a minha vida triste.
[...]
Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável. 
[...]
Oh Deus, eu estava começando a entender com enorme surpresa: que minha orgia infernal era o próprio martírio humano. Como poderia eu ter adivinhado? [...] É que não sabia que se sofria assim. Então havia chamado de alegria o meu mais profundo sofrimento."


[C. Lispector, em A Paixão Segundo G.H.]



sábado, 11 de janeiro de 2014

Bobeira é não viver a realidade...

"Eu não estou interessado em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Minha alucinação é suportar o dia-a-dia
Meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)






Junkie

Você insiste por um fim
E acompanha o tráfego
E acompanha o tráfico
E vende a alma por diversão;
Nada é pior que o nada
Dos que esperam tudo,
Dos que não acreditam
Que o impossível é real.
Você insiste por um começo
Nem que seja de uma dor,
Nem que sinta tanta fúria...
E vende o corpo pela experiência,
Porque nada vale tanto
Que não tenha um preço
Para quem espera tudo
E não acredita em nada.




Lucidez

"Podem ser tão loucos quanto quiserem; Por Deus, ainda tenho minha própria honestidade  e minha própria alma! [...] Podemos estar quebrados, mas temos nossa honestidade e nossas almas! Não acho que nenhum de nós tem de se preocupar com o que fizemos em nossas vidas [...] 
Não é engraçado como você começa a vida achando que o mundo inteiro é um lugar bonito que está só à espera de que você percorra nele o seu caminho? É um sonho bonito que se tem quando se é jovem, antes de descobrir como alguns homens podem ser, como as coisas podem se quebrar. Mas se eu tivesse de viver tudo isso de novo, eu viveria! Viveria! Porque no fundo é uma vida doce! Ouçam esse garoto cantar _ vocês tem aí toda a beleza da vida reunida em uma única canção bonita, e o que mais se pode querer?"

(Jack Kerouac)