O livro Na Estrada, de Jack Kerouac, é um dos clássicos mais deslidos de
todos os tempos. Você pensou que era uma celebração da estrada? Pense de novo [...]. Na Estrada é um clássico da literatura universal justo por não ser apenas isso. [...]
A intenção de Kerouac provavelmente era sim fazer uma celebração da
estrada. Se tivesse sido bem-sucedido, provavelmente não estaríamos falando
dele hoje.
Porque todo grande livro é mais inteligente que seu autor. Toda grande
obra contém em si o seu próprio contradiscurso. Toda grande narrativa sempre se
constrói em torno de uma fratura estrutural que ameaça lhe demolir.
É essa tensão que atrai os leitores, que nos faz voltar ao livro, sempre
renovados [...]. Só os livros que causam esse tipo de engajamento conseguem
sobreviver de uma geração para a outra, e se tornarem clássicos.
Então, por um lado, “Na Estrada” é a história de Sal Paradise,
um escritor certinho de Nova Iorque, que encontra o malucão Dean Moriarty e sai
loucamente com ele pelas estradas da América do Norte. É a celebração da
estrada, um elogio à liberdade, um chamado para que todos saiam de suas casas e
sumam por aí.
Mas, por outro lado, é
exposição progressiva e sistemática desse
exato contradiscurso.
Apesar de idolatrar Dean, até mesmo Sal vai percebendo que ele é
um canalha, egocêntrico, narcisista que só se preocupa consigo mesmo; que usa
as pessoas como se fossem objetos – carteiras, especialmente; que não tem pudor
nenhum em descartá-las quando lhe dá na telha.
Ao longo do livro, várias
pessoas, inclusive o narrador, são atraídas pela energia e força vital de Dean…
até perceberem que essa energia e força vital estão sendo sugadas delas: como
um vampiro, Dean se alimenta dos seus fãs. Suga até o caroço e depois cospe
fora.
Por isso, Sal diversas vezes larga a estrada e volta para Nova
York, para a saia da mãe, para o ambiente familiar e seguro onde pode viver e
trabalhar. A estrada pode até ser boa, parece dizer o livro, mas não por muito
tempo [...].
Até que, mais uma vez, Sal fraqueja, fica de pau duro por Dean,
ambos pegam a estrada, Sal quebra a cara e volta pra Nova York.
[...] Mas o livro só termina
mesmo quando Sal finalmente supera Dean.
É sempre interessante reparar onde as
narrativas começam e terminam, pois essas balizas nos revelam qual é a história
sendo contada – algo nem sempre óbvio.
Na Estrada começa com Sal encontrando Dean e termina no momento
em que ambos se esbarram na rua, em Nova York. Dean chama: “vem”, e Sal,
escaldado, responde: “não, obrigado, estou com amigos, a gente se vê.”
Em literatura, tudo é contexto. Então, cabe ressaltar que essa
cena não é mostrada como a derrota de Sal ou “vejam como Sal ficou careta, a
vida o derrotou”, “o bobão do Sal ficou pra trás, enquanto Dean ganhou o
mundo”, etc.
Pelo contrário, o que a cena mostra é: Dean está só, depois de
passar a vida usando e abusando de todos; e Sal, nosso alter-ego, está sábio o
suficiente para não mais se deixar vampirizar.
E, nesse momento, termina o livro.
Ou seja, Na Estrada não é só uma celebração da estrada [...],
mas também a história do amadurecimento de Sal Paradise.
De como ele finalmente aprendeu a dizer não.
Por Alex Castro, em 19/08/2012 no site Papo de Homem.
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