"- Eu me prometo para um dia este mesmo silêncio, eu nos prometo o que aprendi agora. Só que para nós terá que ser de noite, pois somos seres úmidos e salgados, somos seres de água do mar e de lágrimas.
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Somos criaturas que precisam mergulhar na profundidade para lá respirar, como o peixe mergulha na água para respirar, só que minhas profundidades são no ar da noite. A noite é o nosso estado latente. [...] Na noite a ansiedade suave se transmite através do oco do ar, o vazio é um meio de transporte.
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Não suportei mais e estou confessando que já sabia de uma verdade que nunca teve utilidade e aplicação, e que eu teria medo de aplicar, pois não sou adulta bastante para saber usar uma verdade sem me destruir.
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Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.
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O inferno é a boca que morde e come a carne viva que tem sangue [...], o inferno é a dor como gozo da matéria [...]. A aceitação cruel da dor, a solene falta de piedade pelo próprio destino, amar mais o ritual de vida que a si próprio - esse era o inferno, onde quem comia a cara viva do outro espojava-se na alegria da dor.
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Onde, reduzidos a pequenos chacais, nós nos comemos em riso. Em riso de dor - e livres. O mistério do destino humano é que somos fatais, mas [...] de nós depende realizarmos o nosso destino. Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou.
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Mas é que tornar-se humano pode se transformar em ideal, e sufocar-se de acréscimos... Ser humano não deveria ser um ideal para o homem que é fatalmente humano; ser humano tem que ser o modo como eu, coisa viva, obedecendo por liberdade ao caminho do que é vivo, sou humana. E não preciso cuidar sequer de minha alma [...].
Somos livres, e este é o inferno.
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Eu conhecia a violência do escuro alegre - eu estava feliz como o demônio, o inferno é o meu máximo.
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Só por uma anomalia da natureza é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo.
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Eu caíra na tentação de ver, na tentação de saber e de sentir. Minha grandeza, à procura da grandeza do Deus, levara-me à grandeza do inferno. [...]
A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer. [...] Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma. Eu nunca mais repousaria: eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Se adormeço um instante, o eco de um relincho me desperta. E é inútil não ir. No escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo que durmo, mas no silêncio o ginete respira. [...] Todos os dias será a mesma coisa: já ao entardecer começo a ficar melancólica e pensativa. Sei que o primeiro tambor na montanha fará a noite, sei que o terceiro já me terá envolvido na sua trovoada.
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Que fizemos nós, os que trotam no inferno da alegria? [...] Da última vez que desci da sela enfeitada, era tão grande a minha tristeza humana que jurei que nunca mais.
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A noite é a minha vida, entardece, a noite feliz é a minha vida triste.
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Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.
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Oh Deus, eu estava começando a entender com enorme surpresa: que minha orgia infernal era o próprio martírio humano. Como poderia eu ter adivinhado? [...] É que não sabia que se sofria assim. Então havia chamado de alegria o meu mais profundo sofrimento."
[C. Lispector, em A Paixão Segundo G.H.]